Total de visualizações de página

sábado, 18 de agosto de 2018

Deixe estar... Deixe doer...

Ely Pereira 

... “Let it be, let it be, let it be, let it be… There will be an answer, let it be…”.

A música tocava suavemente no radio do velho carro, enquanto subiam a serra em direção à Lumiar. Seguiam bem devagar, em parte pelo baseado e meio de antes, em parte para curtirem a paisagem, o barato e o velho, e bom som, dos Beatles. Enoque e Selena formavam um casal fora do padrão: jovens de cabeça, mas de idades totalmente diferentes. Trinta anos os separavam. Ele já com cinquenta e três, e ela ainda nos vinte e três. Ele sobrevivendo num casamento de anos de “casa, separa e volta”, e ela separada de um casamento falido, e perdendo tempo num relacionamento sem futuro com um rapaz da sua idade. 

Eles tinham se reencontrado havia um ano. Foi numa festinha à beira mar em uma praia paradisíaca do norte do estado. Os dois foram sem muita vontade, meio que levados, talvez seguindo os desígnios de Jah ou, quem sabe? de duendes e gnomos. Na festa lembraram os altos papos que tiveram na primeira vez que se viram, quando anos antes Selena, separando do marido, precisou de um carro para levar a filha, ainda pequena, e suas malas, até Arraial do Cabo, e alguém indicou Enoque e seu taxi. Durante as quase duas horas de viagem eles conversaram muito sobre seus casamentos, os problemas conjugais e sobre a vida. 

Nessas duas horas descobriam que tinham muito em comum. Gostavam das mesmas coisas, curtiam as mesmas músicas e, enfim, se davam bem em tudo... estilos de vida, comportamentos, tatuagens e o principal: os dois tinham o mesmo sonho, que era o de morar num chalé em uma pequena vila de serra encravada na Mata Atlântica, levando uma vida voltada para a Natureza. E isto era o que mais aproximou os dois. 

Na festa, a conversa mais uma vez foi sobre a vontade mútua de um dia largarem tudo e irem para a montanha, viverem uma vida mais pura, mais zen. Nesta época ela costumava chamá-lo de “Seu Enoque”, num tom meio que uma mistura de respeito e malícia. 

- “Seu” Enoque! Qualquer dia desses vamos fazer uma loucura? Perguntou Selena. 

- Que tipo de loucura? Assustou-se Enoque. 

- Ah! Vamos sair por aí, sem rumo, seguindo só a intuição... 

- Primeiro responda uma coisa: porque você fica cheia de respeito, me chamando de Senhor Enoque? Não precisa tanta cerimônia... 

- É que, assim, fico me sentindo sua ninfeta... 

Os dois riram muito, enquanto as outras pessoas na festa se olhavam, não entendo nada. Só os dois se entendiam. Era tanta cumplicidade que, tinha vezes, nem precisavam se falar. Bastava um olhar para o outro, que se entendiam. Até parecia que conversavam com o pensamento. Enoque lia muito, principalmente livros que discorria sobre a vida após a morte, sobre a transcendentalidade e sobre a espiritualidade. Estava sempre em busca de respostas e conhecimento. 

Assim, Enoque costumava dizer para Selena que ela era a sua alma gêmea, que os dois estavam predestinados a se encontrarem desde vidas passadas, mas que sempre nasciam em eras erradas, acabando por se perderem no tempo. E que nessa nova oportunidade, mesmo tendo eles reencarnado no mesmo século, quase não se encontram, pois nasceram com trinta anos de diferença. 

Selena era uma bela mulher. Loira, corpo esbelto e olhos que iam do azul intenso ao verde esmeralda, dependendo da hora do dia e da intensidade do sol. De baixa estatura, tinha seu corpo coberto por lindas tatuagens e por aqueles pelos dourados que deixavam Enoque louco de paixão. Ele era o oposto. Moreno, cabelos castanhos grisalhando, estatura mediana, usava óculos de grau e, a contragosto, uma barriguinha de chope. 

Mesmo assim se amavam... Se bem que cada um do seu jeito. Ele a idolatrava e queria morar com ela lá na montanha. Ela, porém, sempre dizendo que não o queria magoar. Que sabia que não daria certo, que não se ligava muito tempo em ninguém. Aí ele dizia: 

- Poxa! O amor dói... 

- Então deixe doer - dizia Selena, enquanto os dois riam da situação. 

A diferença entre os dois era só no visual. As duas almas eram idênticas. Eram gêmeas. Pensavam em conjunto. Falavam-se com olhos. Tocavam-se com a mente. Faziam amor com as entranhas. Um começava uma frase e, prontamente, o outro terminava como se fossem uma só consciência. Mas no amor não se encaixavam. E Selena sempre dizendo que sentia muito por não corresponder, não entrar de cabeça nessa coisa de morarem juntos, porque não queria fazer Enoque sofrer. Mas isso dói muito, dizia Enoque. Ela retrucava: Deixe doer... Deixe doer. 

Todos na festa sabiam que Enoque era casado, e que Selena vivia num “rolo”. E foi nesse burburinho de música, conversas, copos e corpos se tocando, que os dois trocaram o primeiro beijo. Trocaram não, que a fogosa Selena roubou o primeiro beijo do tímido Enoque. No som rolava uma música qualquer, mas na cabeça de Enoque tocava uma antiga música da década de setenta: “Você me roubou um beijo, eu que fui para a prisão, o amor fincou a chave no seu coração... Ai! abre coração, vem me fazer feliz...”. O resto da festa foi só trocas de beijos, gostos e sabores. Só amassos, abraços e ardores. 

Enoque tinha um casal de filhos. A menina, um pouco mais nova que Selena, era também sua amiga de colégio, o que se tornava o maior impedimento para os dois resolverem suas vidas. Mas os dois sempre davam uma escapulida, e saiam de carro por aí. Sempre andando pelas serras, pelas matas, pelos caminhos da felicidade. Só não se resolviam, não se juntavam definitivamente. 

Agora subiam pela estrada Serramar. Estavam indo conhecer uma comunidade hippie, como sempre procuram, enquanto John, Paul, George e Ringo cantavam no rádio: “Let it be, let it be, let it be, let it be... There will be an answer, let it be...” . No meio da música, Enoque lhe pergunta: 

- Selena, eu te amo. Quero morar com você. Porque não ficamos juntos? Porque não chutamos o balde? E que seja o que Deus quiser? 

- Por enquanto não! Eu não tenho ainda tanta certeza e, também, não quero te fazer sofrer. Na verdade, eu não tenho certeza de nada. Tem minha filha, tem a sua filha, que é minha amiga, tem a sua mulher, que me conhece, e tem o louco do meu ex... por enquanto não dá... deixe do jeito que está... deixe estar... deixe doer... 

“Let it be, let it be, let it be, let it be... There will be an answer, let it be...” cantavam, enquanto o carro subia lentamente pela sinuosa estradinha...